Texto: Ana Ornelas e Gabriela Villen | Revisão: Felipe dos Santos | Fotos: José Irani
As grandes empresas de tecnologia, conhecidas como big techs, dominam o mercado global com plataformas, códigos e ferramentas que moldam as relações sociais e as formas de conhecimento. De maneira contrária a esse fluxo, comunidades indígenas, negras e periféricas vêm criando suas próprias tecnologias, guiadas por valores coletivos, saberes ancestrais e realidades locais. Longe de serem apenas alternativas, essas práticas demonstram que, há muito tempo, outros modos de produzir, usar e compartilhar tecnologia já existem.
Foi com esse propósito que pesquisadores, ativistas e representantes de movimentos sociais se reuniram para debater alternativas às soluções impostas por essas corporações e pensar caminhos próprios para a tecnologia. Os debates do projeto “Articulações de epistemologias negras, indígenas e dissidências tecnológicas” abriram espaço para promoção do diálogo entre comunidades e universidades sobre o uso crítico das tecnologias, a partir de práticas coletivas.
A roda de conversa, realizada na terça, 20 de maio, na Casa de Cultura Tainã, fez parte de um conjunto de atividades organizadas como desdobramento do evento CryptoRave, que aconteceu na cidade de São Paulo nos dias 16 e 17, abordando debates sobre criptografia, anonimato, segurança e liberdade digital. A programação em Campinas e Limeira foi realizada por uma parceria entre a Pluriversidade Abya Yala (rede de universidades indígenas e universidades tradicionais); a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), vinculada à Pró-reitoria de Extensão, Esporte e Cultura (ProEEC); o Grupo de Pesquisa Informação, Comunicação, Tecnologia e Sociedade (ITCS) do Laboratório de Jornalismo (Labjor) da Unicamp; a Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA); a Faculdade de Educação (FE) e a Casa de Cultura Tainã.

Segundo Marta M. Kanashiro, coordenadora do Grupo de Pesquisa ICTS e pesquisadora do Labjor, que abriu o evento ao lado de TC Silva (compositor e coordenador da Casa Tainã), a proposta era debater como comunidades podem praticar tecnologias dissidentes das grandes empresas: “A ideia é que essa apropriação aconteça de acordo com as demandas locais, com as necessidades cotidianas e de sobrevivência das comunidades. Assim, propõe-se trazer o debate como forma de fomentar articulações tanto nos movimentos sociais quanto na pesquisa, uma vez que ela é realizada com os movimentos”, explicou.
TC Silva, por sua vez, provocou o público a refletir sobre os limites do discurso da resistência quando este se ancora apenas na reação. “Eu entendo o significado da resistência, mas quero existir plenamente. Não quero ser sobrevivente”, afirmou. Em sua fala, TC reforçou que é preciso romper o “cercado” das tecnologias que moldam comportamentos. Para ele, a inteligência artificial só deveria importar enquanto resultado de uma inteligência coletiva enraizada nos saberes tradicionais, na oralidade e nas práticas comunitárias.

O encontro contou ainda com a participação das pesquisadoras do ITCS Débora Prado, mestre pelo Labjor e editora principal da Association for Progressive Communication (APC); Marina Silva Meira, mestre pelo Labjor e coordenadora de políticas públicas na organização Derechos Digitales; e Violeta Assumpção da Cunha, também mestre pelo Labjor Unicamp e integrante da Rede Transfeminista de Cuidados Digitais.
Destaques na CryptoRave, as pesquisadoras Sophie Toupin, canadense, e Yunuen Torres Ascencio, mexicana, falaram sobre suas pesquisas em roda de conversa no “Jardim de Saberes Ancestrais” da FE, no dia 19, e participaram do encontro na Casa de Cultura Tainã, no dia 20, contribuindo com reflexões sobre tecnologias críticas, epistemologias situadas e perspectivas feministas. A programação envolveu ainda exibição de vídeos e curtas-metragens seguidos de debate no Cine Vagalume, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), no campus Limeira, no dia 21.
Tecnologias na luta contra o narcotráfico e o apartheid
Yunuen relatou a experiência de luta de sua comunidade, que enfrentou o narcotráfico, com apoio do desenvolvimento de tecnologias de comunicação próprias. Segundo ela, a atuação dos grupos criminosos ia muito além das drogas, pois envolvia a extração ilegal de madeira, o controle territorial e até a cobrança pelo uso das estradas. “Apesar do medo, um grupo de mulheres decidiu enfrentar os homens armados que estavam extraindo madeira. Mesmo desarmadas, elas se colocaram diante deles e disseram: ‘Vocês não vão passar’”, contou.

O enfrentamento passou pela expulsão de criminosos, autoridades e meios de comunicação, substituídos por sistemas de comunicação locais, que deram origem à Rádio Fogata e a uma rede de intranet. A rádio, operada inicialmente com equipamentos emprestados, tornou-se uma ferramenta vital para informar, comunicar e difundir assuntos relevantes para o povo. “Reconstruímos uma estrutura de governo comunitário, retomamos a ronda comunitária e colocamos a segurança em nossas próprias mãos”, finalizou. A criação e a administração da intranet, por sua vez, suscitaram debates de quais conteúdos deveriam ser disponibilizados, enfrentando problemas frequentes como a alienação da juventude das práticas comunitárias tradicionais.
As múltiplas formas de resistência digital foram abordadas por Sophie Toupin, a partir de sua pesquisa sobre as tecnologias de criptografia utilizadas na resistência ao apartheid na África do Sul e em outras lutas anticoloniais. Para a pesquisadora, resistir digitalmente envolve tanto práticas técnicas quanto posicionamentos políticos. “A resistência digital é um processo coletivo”, afirmou. Ela se manifesta contra fenômenos como a comercialização e a plataformização da internet, a vigilância por parte do Estado e das grandes corporações, a coleta de dados para treinar inteligências artificiais e a exploração de trabalhadores de plataformas.

Casa Tainã e a tecnologia das raízes
Fundada há mais de 30 anos, a Casa de Cultura Tainã trabalha na valorização das expressões artísticas, culturais e sociais das comunidades tradicionais brasileiras. Em 2007, ela foi responsável por articular a Rede Mocambos, uma rede nacional de comunicação comunitária voltada à troca de saberes entre comunidades quilombolas, indígenas, rurais e de terreiros.
Atualmente, a Rede Mocambos conecta cerca de 200 comunidades por meio de telecentros autônomos, com acesso à internet e produção de conteúdos próprios. Uma de suas criações mais simbólicas é a Rota dos Baobás, um circuito físico, digital e afetivo entre territórios, que promove o registro da memória e da cultura local.

A Casa de Cultura Tainã opera com uma visão de tecnologia enraizada na ancestralidade, na oralidade e na coletividade. Em vez de replicar o modelo das grandes corporações, o espaço aposta em ferramentas digitais que reforcem a autonomia dos territórios e a circulação de conhecimentos entre pares. Como define o coletivo, trata-se de plantar sementes para uma internet viva, que brota do chão da comunidade.
Por isso, para TC Silva, a tecnologia precisa nascer do chão da comunidade. “Tambor é tecnologia. Conhecimento é saber como fazer um chá e curar uma dor de barriga sem nunca ter aprendido a escrever o nome. Isso também é ciência, é código, é linguagem”, refletiu. Assim, entoando versos de uma canção (“Vem viver, é fácil como poder voar. Voar até além de onde vai a luz, no fundo, escura de nós.”), o mestre reforça os saberes que vêm de gerações e que garantem o futuro.