Encontro Internacional de Territórios e Saberes reúne comunidades, pesquisadores e poder público

Texto e fotos: Gabriela Villen e Maria Luiza Robles Arias  I  Revisão: Felipe dos Santos

“No fundo, as soluções para adiar o fim do mundo já existem nos territórios. Para conhecê-las, é preciso sair dos gabinetes, pisar nas terras onde os saberes tradicionais resistem, preservados”. Assim diz a Carta Final do I Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS), que aconteceu entre 9 e 13 de setembro, em Paraty–RJ. O evento reuniu 1.500 participantes de 22  países diferentes, entre povos e comunidades tradicionais e representantes de instituições parceiras, com o objetivo de reafirmar o compromisso com a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável por meio do diálogo entre saberes tradicionais e científicos.

Ivanildes Kerexu, na abertura oficial do Encontro

“Quando a gente fala de troca de experiência, não é uma troca só do movimento, mas também universidades, as instituições e outros parceiros. A gente precisa fazer esse alinhamento de luta, de movimento, para conseguirmos inserir toda uma luta e um aprendizado juntos. Para a gente poder se fortalecer enquanto pessoas, enquanto movimento, enquanto lutadores em prol da sociedade no todo. O EITS foi lindo, foi muito importante”, afirmou  Ivanildes Kerexu, liderança da Aldeia Rio Bonito, em Ubatuba–SP, pesquisadora do Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) e integrante do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e da Comissão Guarani Yvyrupa.

A fim de costurar parcerias, a  Pró-reitoria de Extensão, Esporte e Cultura (ProEEC) da Unicamp apoiou a ida de três docentes e dois estudantes extensionistas, além de liberar uma funcionária convidada pelo evento. O que permeia a fala de todos é a necessidade de aprendizado da academia com o território e a potencialidade das trocas. “Voltei de Paraty com algumas certezas e muitas inquietações. Dentre elas, a de que nós temos muito a aprender com os movimentos sociais que resistem, há séculos, a diferentes tentativas de destruição de suas culturas e seus territórios. Precisamos aproximar a Unicamp desses movimentos sociais; e essa aproximação precisa se pautar, inicialmente, muito fortemente na escuta atenta e nas diferentes tentativas de entender, a partir das suas culturas, quais são suas características, seus desejos, suas lutas e, eventualmente, suas demandas para essa possível troca com a Unicamp”, relatou Sandro Tonso, professor da Faculdade de Tecnologia (FT).

Sandro Tonso, na Oficina Intercultural dos Povos: articulação de saberes e poderes

Da mesma forma, Carolina Cantarino, docente da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), destacou as oportunidades transformadoras para a universidade que se abrem com esse encontro. “O EITS possibilitou muitos diálogos e trocas de experiências sobre a importância da universidade pública como um espaço de promoção da diversidade epistêmica. Ao criar instrumentos para a valorização de diferentes modos de conhecimento, a universidade pode cada vez mais vir a ser um lugar de encontro entre diversas epistemologias, modos de pensamento e de vida”, afirmou. Cantarino ressaltou ainda importância do reconhecimento dos notórios saberes, debate que já vem propondo na Unicamp e que aparece nos compromissos listados na Carta Final do Encontro.

Ainda sobre aprendizados, Laís Fraga, docente da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) e coordenadora da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/Unicamp), traçou paralelos entre o trabalho realizado pelo OTSS (uma parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), principais responsáveis pela organização do evento) e a ITCP. “Tem muitas afinidades do trabalho do Observatório com a Incubadora, especialmente essa atuação da Fiocruz tão próxima com os movimentos sociais no território, com o protagonismo dos movimentos sociais, das lideranças, representantes. Vejo muitas possibilidades de aprendizados e de coisas para fazer”, comentou.

Fraga destacou ainda a atuação de ex-integrantes da ITCP no Observatório, como Sidélia Luiza de Paula Silva, mestra em Ciência Política pela Unicamp, que hoje coordena a Incubadora e a Biblioteca de Tecnologias Sociais do Observatório. “A extensão está formando pessoas para trabalhar em lugares assim, para atuarem, não só no mundo profissional convencional, mas também em lugares diferentes. São pessoas que vão ter facilidade de trabalhar com movimentos sociais, que vão ter facilidade dessa atuação próxima, dialógica, que tem formação teórica, tem formação metodológica para essa atuação”, ressaltou.

Os estudantes que compuseram a comitiva, Mayra Cristina de Lima e Samuel Freitas, dos cursos de Geografia e Ciências Sociais e integrantes da ITCP, relataram experiências formativas e transformadoras. “Sai muito tocada por toda a experiência, em ouvir e trocar com as comunidades marisqueiras, quilombolas, caiçaras, indígenas, além das outras instituições e movimentos sociais, articulados para construir uma agenda sustentável, saudável e digna para os povos”, contou Mayara, que já prevê impactos em seu retorno a universidade. “A partir dessa noção, dada pela dialogicidade entre instituição e território, fortalecemos as práticas extensionistas da Incubadora, o território como protagonista,  como um agente científico e construtor das agendas, das políticas públicas e dos próprios projetos extensionistas”, pontuou.

Samuel, por sua vez, afirmou que foi surpreendido pelo evento. “Eu percebi que lá não seria o lugar para fazer um networking qualquer, mas, sim, um lugar para trocar saberes, escutas e de pisar no chão do território para poder experienciar o que as comunidades tradicionais tanto relatam e denunciam e que, sem esse contato com a terra, sequer poderíamos imaginar. E nesse momento a frase ‘a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam’, de Leonardo Boff, ficou ecoando na minha cabeça até o final do EITS. A partir do evento, eu pude compreender melhor como se dá o processo de prática de extensão popular”, relatou.

Equipe da Unicamp que marcou presença no EITS

Além da comitiva enviada pela ProEEC, participaram pesquisadores do Projeto Endure, coordenado por Leda Gitahy, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG), que têm trabalhado nessa articulação com os Fóruns de Comunidades Tradicionais desde novembro de 2023, quando realizaram um trabalho de campo em Paraty–RJ buscando compreender as estratégias locais comunitárias para o enfrentamento da pandemia. Em junho deste ano, o grupo colaborou com os Fóruns para a realização do Encontro Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, na cidade de Registro–SP, ocasião em que foi lançada a Aliança dos Povos da Mata Atlantica. No EITS, a equipe do Edure participou da programação compondo a oficina de universidade intercultural dos povos, a relatoria textual e a facilitação (relatoria) gráfica, a convite do evento.

“Movimentos sociais, comunidades tradicionais e indígenas e universidades enfrentam batalhas históricas em suas atuações; buscamos um mundo menos injusto e desigual e enfrentamos desinformações, negacionismos e conservadorismos. Produzir ações articuladas é uma forma de responder, resistir e incidir sobre as forças que nos atacam nas frentes em que atuamos. Os projetos de pesquisa, como o Endure, fortalecem as redes de solidariedade intra e extra universitários, colocando ênfase no trabalho de campo, o que incentiva a formação de vínculos e a organização das frentes de luta contra o avanço do projeto da ultra direita”, destacou Aline Hasegawa, pós-doc que conduziu a equipe.

Segundo Ana Caroline Dias Silva, que, com Cristina Alejandra Larraín Manzo e Matheus Sousa Barros, compôs a equipe do Endure nas relatorias do EITS, o trabalho foi orientado pelo conceito de “Ecologia de Saberes”, que promove o diálogo entre diferentes formas de conhecimento, fortalecendo as lutas sociais sem hierarquizar os saberes. “Enquanto parte da equipe de relatoria, foi fundamental reconhecer que relatar é um ato político, que exige atenção para ser fiel às falas e para garantir o registro das vozes mais tímidas ou frequentemente silenciadas, sem suprimir divergências ou ocultar contradições”, ressaltou. Para ela, a facilitação gráfica é uma forma de sistematizar e organizar informações em uma linguagem visual, desempenhando um papel essencial no registro dos diálogos entre saberes. “Esse processo é, ao mesmo tempo, sistêmico e inclusivo, utilizando ilustrações para representar pensamentos complexos de maneira criativa e fácil de entender. Além disso, contribui significativamente para a construção da memória das trocas de experiências”, pontuo




Outra importante participação foi de Maíra Rodrigues da Silva (doutoranda do IG e primeira mestra quilombola da Unicamp) na mesa sobre Racismo Ambiental. Em sua fala, ela destacou o racismo ambiental com uma prática histórica no Brasil, que traz a violação de direitos à população negra, incluindo quilombolas, população periférica e povos e comunidades tradicionais, além de indígenas. “O combate a essa prática se dá pela asseguração de diretos a esses povos, principalmente a regularização fundiária de suas terra”, afirmou. Maíra chamou atenção ainda para a necessidade do combate às violações causadas por setores agropecuários, energéticos, imobiliários e de mineração, que se instalam sobrepostos a esses territórios e produzem diversos impactos.

A realização do EITS é fruto de uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e o Colégio Pedro II (CPII). Foram mais de 70 atividades entre mesas, oficinas, seminários, trocas de experiências e vivências culturais, organizadas a partir de cinco eixos temáticos: (1) ecologia de saberes para o bem-viver; (2) oceanos e rios – redes de vida e saberes; (3) saúde, resiliência e organização social; (4) educação, cultura e modos de vida; e (5) articulação em redes.

Todo o evento foi protagonizado pelos comunitários, pessoas indígenas, quilombolas e caiçaras, de diversas regiões do Brasil, ressaltando-se a atenção à paridade de gênero nas mesas de debates. Entre os destaques da programação, estão as reuniões do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e a Câmara Temática de Povos e Comunidades Tradicionais da Comissão Nacional dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (CNODS), realizadas fora de Brasília pela primeira vez na história. Os Ministérios da Cultura, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas, entre outros, além da Secretaria Geral da Presidência da República, também marcaram presença no evento.

O encerramento do Encontro celebrou o lançamento do Armazém do Território do Fórum de Comunidades Tradicionais no Centro Histórico de Paraty e da Rede Nhandereko, do FCT, que promoverá experiências autênticas de Turismo de Base Comunitária (TBC) protagonizadas por comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras no litoral sul do Rio de Janeiro e litoral norte de São Paulo.

O evento foi amplamente registrado pela Rede Nacional de Comunicação Popular, também lançada no Encontro. Confira alguns dos materiais produzidos pelo coletivo no Instagram do FCT e do OTSS.

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