Documentário gravado na Unicamp conta a história do indígena Ercolino Desana

Texto: Ana Ornelas | Fotos: José Irani

Ercolino Alves é mais do que apenas um benzedor. Pertencente ao povo Desana, do Alto Rio Negro, ele é um conhecedor da medicina tradicional que carrega, há décadas, práticas de cura que resistem à lógica da medicina ocidental. É dele a reza que ajuda a virar uma criança no ventre da mãe, o chá que fecha feridas difíceis de cicatrizar. Esse conhecimento tradicional encontra espaço na Unicamp para troca de experiências com a medicina dos hospitais e das salas de aula.

Desde 2020, Ercolino vem sendo acompanhado por uma equipe de cinema, que está desenvolvendo um documentário não apenas sobre o ofício do benzedor, mas sobre o cotidiano de uma família inteira que carrega uma medicina sustentada pela força da oralidade, pela prática comunitária e pela fé. O filme ganhou vida em São Gabriel da Cachoeira, município do Amazonas onde Ercolino se tornou o primeiro benzedor a atuar dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). “Montei a sala de medicina tradicional dentro do hospital. Houve quem duvidasse, mas eu mostrei o que também sei fazer”, contou Ercolino, relembrando o dia em que ocupou um espaço oficial de cuidado. É por isso que, para ele, “a medicina ocidental e a medicina tradicional têm que andar juntas”. 

Mas o que traz o benzedor ao interior paulista não é só o filme. É também a ferida aberta pela ausência de Jorge, seu filho, que foi estudante da Unicamp. Jorge estudava na Faculdade de Educação Física (FEF) quando morreu atropelado, em 2022, em circunstâncias que até hoje a família considera mal explicadas. “A gente quer saber o que aconteceu. Não é vingança, é verdade”, diz Edilene Alves, filha de Ercolino, que também fez caminho na saúde, formando-se em Fisioterapia na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). O retorno ao campus, para a família, é também um ritual de memória: rever amigos do estudante, conversar com professores e pisar no mesmo chão. É, como disse Ercolino, “trazer de volta o espírito dele, porque em sonho meu filho me levou onde ele andava. Ele está aqui.”

O encontro de Ercolino Desana e sua filha, Edilene, com o assessor da ProEEC, Rubens Bedrikow.

Esse momento se torna ainda mais simbólico quando se cruza com um momento de virada dentro da universidade. A Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp se organiza para abrir, dentro do Hospital de Clínicas (HC), o primeiro ambulatório voltado à medicina indígena. Não se trata apenas de oferecer atendimento clínico, o projeto propõe articular o saber ancestral, o cuidado comunitário e o protocolo hospitalar.

É nesse contexto que acontece o encontro de Ercolino com o Dr. Rubens Bedrikow, professor da FCM e assessor da Pró-Reitoria de Extensão, Esporte e Cultura (ProEEC). Entre uma história e outra, Rubens lembrou um trecho do historiador Roy Porter: “Nunca se curou tanta gente e nunca se criticou tanto a medicina. A gente ganhou potência para curar o corpo, mas esqueceu da pessoa inteira.” Ercolino complementa, dizendo que, para ele, o que falta é escuta. “Quando um não conhece o outro, dá conflito. Quando conhece, anda junto.”

Cenas do documentário, que ainda não tem data de estreia. (Fotos: Alfredo Manevy)

Para Edilene, esse diálogo é o que sustenta a prática em territórios onde os saberes se cruzam diariamente. Na rotina como fisioterapeuta, ela conta que sempre pergunta ao paciente se tomou um chá, se buscou o pajé, se misturou tratamentos. “Eu nunca falo ‘não toma chá’. Eu pergunto: ‘Você já tomou?’. É cultura deles. A gente tem que respeitar. Eu levo meu atendimento como fisioterapeuta, mas também levo o jeito do meu pai.”

A passagem de Ercolino pela Unicamp sinaliza o que pode ser um ponto de partida para novos projetos. Enquanto o filme caminha para a fase final de gravações, o ambulatório de medicina indígena avança como uma tentativa de aproximar saberes, profissionais e estudantes. Para a equipe do documentário e para a família, a visita é mais do que gravação. É diálogo, memória e espaço de escuta para um conhecimento que, por décadas, ficou de fora das salas de aula, mas que agora encontra quem queira aprender.

O documentário

A ideia de transformar a trajetória de Ercolino em documentário começou com o diretor Alfredo Manevy, que conheceu o trabalho dos benzedores em 2010, quando ainda trabalhava no Ministério da Cultura. Foi nessa época que visitou São Gabriel da Cachoeira e teve o primeiro contato com a força cultural do Alto Rio Negro, o mesmo território que mais tarde se tornaria o centro do filme. “Fiquei muito impressionado com a intensidade desse trabalho”, contou Manevy. 

Anos depois, ele retomou o projeto junto com a Miração Filmes, com produção de Sérgio Roizenblit e Leon Roizenblit, além de co-direção do cineasta Gualberto Ferrari. A aproximação com a família de Ercolino se deu com apoio da antropóloga Aline Scolfaro, que trabalha há anos na região e ajudou a convencê-lo e toda a família a participar do filme. “Eles não são apenas personagens. São parceiros, discutem com a gente o que deve estar no filme, como deve ser. É uma construção coletiva”, explicou o diretor.

Parte das gravações do documentário aconteceram na Unicamp.

Apesar da admiração por parte da equipe, a capacidade de Ercolino foi testada diversas vezes. Uma delas marcou a própria trajetória do benzedor, quando uma mãe indígena prestes a passar por uma cesárea teve o parto revertido depois de um benzimento. “Eu falei pra ela: daqui 20 minutos teu filho vem. E veio. Foi minha prova.” Outra marca foi o combate silencioso à pandemia: sem ter remédio de farmácia, Ercolino conta que carregava litros de chá na mochila para atender pacientes com Covid-19 em comunidades isoladas. “Curei 18 na Cachoeira, tudo entubado. Só eu, meu chá e Deus.”

Mesmo assim, nem todos aceitaram seu saber sem questionar. Ercolino também já foi questionado sobre quem validaria seu conhecimento como benzedor. Respondeu sem rodeios: “Vai lá na comunidade, cava o túmulo do meu pai, do meu avô. Quem me ensinou tá debaixo da terra. Meu diploma é esse.”

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